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9.6.13

De mulher pra mulher: quando o assédio é feito por ELAS

Muita gente não entende quando se reclama do assédio nas ruas, ou street harassment. Alguns homens dizem: "agora não dá nem pra elogiar mais!". Há uma grande diferença entre o elogio e o assédio. O elogio é para fazer O OUTRO se sentir bem. O assédio é para fazer O ASSEDIADOR sentir-se bem, a partir do sentir-se mal do outro. E entre esses dois polos, existem palavras, gestos e atitudes que estão mais relacionados com um, mais relacionados com outro. Enfim, é cultural.

Não poucos autores, da psicologia à semiótica, falam de uma violência que é da ordem do olhar, ou das palavras. Não chega a ser um soco, um tapa, uma contusão que vai deixar marcas roxas e membros quebrados, mas é uma agressão que fere na alma. Dói mais ou dói menos? Acho que não existe medida pra isso. O importante é saber que UM se satisfaz com a dor, ou o constrangimento, ou o sofrimento, ou a humilhação do OUTRO.

Boa parte desse tipo de assédio está fundado nos aspectos da sexualidade e do poder. Alguns olhares e palavras querem dizer "olha só o que eu poderia fazer com você agora". E esse "o que", no assédio, obviamente, nunca é algo que a outra pessoa quer. É um tomar à força, um invadir, um desrespeitar o direito que cada um tem de dizer sim ou não, INDEPENDENTEMENTE do que estiver vestindo/falando/bebendo etc.

A "justificativa" para o assédio, então, parte de elementos da aparência de alguém que, para o assediador (e para a sociedade, evidentemente, porque ele não vai tirar a ideia do nada), significam que a pessoa assediada "merece", "está pedindo". Pode ser a roupa, pode ser a forma do corpo ou pode ser, simplesmente, aquilo que "indica" o gênero feminino. Mas se tal tipo de assédio é algo típico de uma sociedade machista e patriarcal, não se pode dizer que, nesse sistema, TODA a vítima é mulher e TODO algoz é homem. Homens também são afetados pelo "machismo", assim como também existem mulheres "machistas".

Fiquei com vontade de escrever sobre isso depois de três cenas vivenciadas essa semana aqui na Itália.

Cena 1: cruzamento movimentado em Milão. Cidade grande, cosmopolita. Calor dos infernos. Sinal fechado para pedestres e também para os veículos de uma das pistas da rua próxima.

Entre tantas pessoas que esperam para atravessar, uma mulher usando shorts e camiseta. Tudo muito "decente", se é pra a gente usar esse tipo de critério. Na rua, um grupo de oficiais da polícia municipal em motocicletas. Um deles, o da frente, olha acintosamente para a moça, medindo-a de alto a baixo. Seu olhar não é de admiração. É de desafio. É de afronta. É sexualmente agressivo.

Ela não olha para ele (não viu? Fingiu que não viu?). Ele não tira os olhos dela. Para ele, não basta admirar uma mulher bonita (digamos que fosse esse o objetivo...). Ele só estaria satisfeito se ela visse como ele olha para ela, tudo o que o olhar dele diz que poderia estar fazendo com ela ali na rua, ela querendo ou não.

Acho que isso me fez refletir sobre uma das diferenças entre o elogiar e o assediar: ele QUERIA que ela SOUBESSE.

Cena 2: tabacaria em Bologna. Cidade menor, mas que ainda assim se pretende cosmopolita, habitada por gente de todas as partes do mundo. Calor dos infernos.

Uma mulher entra no pequeno comércio para comprar um passe de ônibus e dois envelopes. Ela veste uma saia longa, uma regata e uma écharpe (tudo muito "decente"). Duas outras mulheres atendem no balcão: uma bem jovem e outra mais velha. A cliente dá bom dia e a mulher mais moça responde, olhando para o traje da cliente e dizendo com bastante ironia: "ma che calorosa a signora...".

Cena 3: ainda Bologna. Sábado à noite. Calor dos infernos. Uma mulher usa saia um pouco acima do joelho e camiseta preta com um decote discreto (tudo muito "decente"). Ela caminha por três quilômetros até o ponto de encontro com sua amiga. Passa por diversos homens, alguns estrangeiros. Nenhum fala diretamente com ela, ou dela, ou ao menos não em um idioma que ela possa entender.

Chegando na parte nobre da cidade, ao cruzar com um grupo de homens e mulheres italianos, bem vestidos, que saem de um café, ela ouve perfeitamente uma voz feminina se elevar para dizer dela, pelas costas, sempre com ironia: "ma che caldo!".

Não sou a mulher assediada do cruzamento em Milão (sou testemunha), mas sou a mulher que foi assediada duas vezes em Bologna. Assediada por outras mulheres, que não aprovaram as roupas que eu vestia, e que fizeram questão que eu soubesse disso sugerindo que eu estava mostrando demais o corpo.

Nesse ponto, tanto o policial asqueroso de Milão como as irônicas cidadãs italianas tiveram o mesmo objetivo: fazer com que outras pessoas se sentissem mal, para o próprio prazer ou para aliviar algum recalque/frustração com o qual não conseguem lidar.

E devo confessar: no meu caso, elas conseguiram.

2 comentários:

M7B disse...

Adriana,

Parabéns pelo texto de utilidade pública.

Já vivi muito assédio aqui no Rio de Janeiro, onde moro. Os motivos foram vários: meu peso (sou magra), a cor da minha pele (não costumo ir à praia) ou minhas roupas.

Algumas vezes também me senti mal. Já ri por não saber o que fazer. Em momentos extremos, movida pela raiva, até respondi ao desrespeito alheio. Parece que toda país, cidade, grupo e pessoa tem suas 'verdades culturais' (nem tão únicos ou universais).

Recentemente fui barrada na entrada de um colégio de segundo grau onde iria fazer uma doação de revistas em quadrinho. Estava usando um short que nem sabia, mas era 'faixa de Gaza' (no meio do caminho, podendo gerar conflitos dependendo do 'entendimento' alheio. Para ser mais exata, a distância em palmos era de 2,5 abaixo dos glúteos ou acima joelho). A mulher que me barrou o fez de maneira prepotente. Me senti uma criminosa por usar um short 'decente' num dia de calor infernal.

Voltando à Itália, olha aqui um outro lado da moeda, no 'causo' do Fábio Saga - http://www.minhasaga.org/2013/06/o-verao-na-italia-e-a-mudanca-na-vida-das-pessoas.html

Un salutino,
MB

Adriana Baggio disse...

Oi MB, obrigada pelo comentário.

Com certeza, cada lugar tem suas idiossincrasias. Meu ângulo, como dizem nos seriados americanos, foi tentar achar um ponto que caracterizasse o assédio e, a partir daí, mostrar que ele pode vir de onde menos se espera – como de uma mulher na porta de um colégio, como você relatou.

Interessante o caso do Fábio! Explica muita coisa sobre o jeito de os italianos levarem a vida.

Abraços,

Adriana